
A cadeira de balouço continuava vazia no canto mais quente da sala.
Com o olhar fixo num ponto imaginário da parede branca de recordações ele recuou até um tempo em que os seus traços dourados se confundiam com o trigo maduro dos campos, onde as suas mãos falavam a linguagem eterna dos apaixonados.
Fugiam dos outros para se encontrarem. Fugiam dos seus medos em busca de uma descoberta permanente.
E ela adormecia na dureza do chão, com a água quente do seu olhar a afagar-lhe os sonhos.
Percorria-lhe os gomos do cabelo numa carícia distraída, enquanto os sonhos voavam até ao futuro, naquele tempo em que ela seria sua e com ele aprenderiam uma nova vida. Vida que se entrelaçava entre os dedos que nunca se soltavam.
Ela partilhava o seu silêncio com as palavras que ele não conseguia calar.
O seu olhar sereno era o porto de abrigo, onde ele ancorava sempre que as suas inquietações o levavam a procurar destinos errantes.
Não contavam os anos que estavam juntos, preferiam o sabor das gotas de amor que os alimentava diariamente.
Acreditavam que a felicidade é a conquista de um momento que a aragem brincalhona afastava mas, que a sua teimosia não deixava fugir para sempre.
Completavam-se no puzzle da diferença…
…
As suas mãos tinham delineados traços de história que o baú da memória não queria esquecer, mas uma dia começaram a emagrecer, os ossos sobressaíam e deixavam-no assustado, até ficar cego com o grito de dor que lhe moldou as feições serenas.
-Pouco se pode fazer
Com estas palavras simples, mas cruéis, todo o destino foi reescrito, enquanto assassinada a esperança via as raízes do seu amor serem substituídas por outras fortes, mas malignas que sufocavam a força da vida.
A luta parecia em vão…cada passo de coragem era contraposto por dois de desolação.
O corpo moribundo, a definhar num espaço que não era o dele e que não o deixava viver.
Uma raiva cega impedia-o de pensar, ouvia apenas a sua voz doce, mas firme, apesar de cansada, como se fugisse de um cativeiro distante:
-Só concebo a vida quando vivida em plenitude. Promete-me que nunca me deixarás ser uma sombra de mim mesma…
As palavras viajavam dentro do seu peito, ressoavam na sua cabeça.
Pareciam uma profecia que punha um fim prematuro a uma história cujo fim deveria estar ainda tão distante.
Ele sabia qual era o seu desejo.
-Não sei como me podes pedir isso tão friamente. Só de pensar no que está a dizer sinto calafrios a percorrerem-me todo o corpo. Sabes que nunca poderia fazer isso, és demasiado importante para mim para pensar sequer nessa hipótese.
A conversa tinha começado depois de uma visita à casa abandonada onde se encontravam em tempos que só a memória guardava.
-Só a ti é que podia pedir isso, pois sei o que significamos um para o ouro. Respeito a tua forma de pensar e acredita que nunca irei contra ela, se a vida a isso me obrigar. Mas, peço-te que também respeites a minha…só te peço que nunca me deixes a vegetar. Não há nada que me assuste mais do que ver dias, meses ou mesmo anos impedida de viver, sem consciência de quem sou, sem o uso pleno das minhas capacidades físicas e/ou mentais…em suma sem poder amar, sofrer, sorrir, chorar, pensar. Sabes que para mim a vida tem que ter um sentido, uma razão…
-…mas onde fica a esperança nessa tua decisão!
-Se isso acontecer é porque já não há esperança, ou então ela está tão distante que não chegará a tempo de me salvar.
-E como me podes pedir isso a mim, precisamente a mim, que te amo acima de tudo que tome uma decisão dessas.
-Precisamente por isso, por saber que me amas como amas é que te faço este pedido. Só quem ama com esta intensidade pode fazer o que eu te peço, só o amor te dará essa coragem.
-Isso seria roubar-te de mim e isso nunca o conseguiria fazer
-…e como conseguiria viver com um fantasma do que fui, depois deste pedido. Como conseguirias ver desaparecer o meu sorriso, o meu afago matinal, a minha voz a percorrer o teu ouvido…
-Viveria com a esperança no futuro
-…e quando soubesses que já não haveria futuro
-viveria para ti
-…mesmo se eu não estivesse lá
-continuarias viva
-artificialmente
-Mesmo assim sentiria o teu respirar na palma da mão com que te acariciaria minuto após minuto
-Peço-te que se um dia estiver nessa situação, que não me abandones num mundo sem sentido!
Ele calou-se, não sabia o que lhe dizer. Até nisso eram diferentes e, no entanto, nunca a diferença os tinha afastado.
Sorriu tentando esquecer aquela conversa de loucos
-Que conversa insana. Estamos os dois com imensa saúde, tudo isto não passa de uma ideia absurda…
O olhar dela assustou-o e ainda mais a sua voz…um súplica muda, dorida
-Claro que sim, mas quero que saibas o que eu penso…só em caso de…
Sentiu estremecer o seu corpo, ao som daquele timbre tão diferente daquele que ele conhecia
Nas semanas seguintes tudo se precipitou.
Aquela conversa povoava todos os pesadelos que enegreciam as noites longas na cama vazia.
Assustava-se com a rapidez com que aquele corpo outrora cheio de vida definhava a perdia a razão.
Ela lutava com as suas armas, pois sabia que de pouco lhe valeriam os tratamentos.
Um dia encostou os lábios pálidos de dor ao seu rosto e murmurou, por forma a que só ele ouvisse:
-Não sei viver, quando me roubaram a vida…
E o esforço que fez foi tão grande que lhe faltou a consciência para ver o mar de lágrimas que inundou os seus olhos cansados.
Sentou-se no chão com o peso de um mundo de dor a vergar-lhe as costas.
Os médicos diziam-lhe que podia ser que com o novo tratamento ela conseguisse sair do sono profundo em que tinha mergulhado.
Ele sentia-se egoísta na sua dor. Ouvia a sua súplica durante o dia, inundava-se nela durante a noite…e recusava-se a acreditar que o fim tinha chegado.
Um dia pegou no seu diário, estrategicamente colocado na gaveta das suas camisas. Aquele diário que ela escondia e com que o provocava. Tinha uma frase apenas:
-Só posso confiar em ti, só o teu amor me pode salvar.
Nunca duvidou daquilo que ela pretendia, aquela frase apenas reforçou a ideia de que ela pressentiu o que lhe aconteceu.
Naquela noite o ar estava denso como o seu olhar embaciado, a tempestade que se anunciava no horizonte adequava-se ao tumulto que vivia dentro de si.
Olhou aquele rosto de estranha dor e beijou-a dando-lhe um sopro de vida que seria o seu companheiro nos próximos tempos.
…e deitou-se ao seu lado ocupando o espaço que a extrema magreza tinha deixado vazio.